Atividade em Homenagem ao Centenário de Morte de Augusto dos Anjos, sob direção da acadêmica Begma Tavares foram apresentadas duas comunicações no dia 14 de novembro de 2014.
Seiva de Luz também homenageou Augusto dos Anjos
O grupo de teatro leopoldinense criou, produziu e apresentou, no dia 12 de novembro de 2014, no Auditório do CEFET, a peça Augusto em Cord´Eu. Aqui apresentamos algumas imagens do evento.
12 de novembro de 2014: há cem anos, morria Augusto.
A Secretaria Municipal de Cultura, Esporte, Lazer e Turismo fez o lançamento de Placa e Selo comemorativos desta efeméride, seguindo-se a entrega do título de Cidadão Leopoldinense ao escritor Alexei Bueno. À tarde, foi realizada visita ao túmulo de Augusto dos Anjos, com declamação de poesias por alunos do Centro Educacional Conhecer e da Escola Estadual Augusto dos Anjos.
Quadrinhos e Augusto: mesa redonda
Foi realizada no dia 11 de novembro de 2014, no Anfiteatro Luiz Raphael do Museu Espaço dos Anjos, mesa redonda mediada pela acadêmica Glaucia Costa. Participaram Jairo Cézar, de Sapé (PB), autor do livro Augusto dos Anjos em Quadrinhos; a acadêmica Natania Nogueira, de Leopoldina (MG); e o professor Guilherme Garcia, de Belo Horizonte (MG).
Augusto dos Anjos em Quadrinhos
Na noite do dia 10 de novembro de 2014, como parte das Homenagens pelo Centenário de Morte de Augusto dos Anjos, a Energisa trouxe a Leopoldina o escritor Jairo Cezar, Secretário Executivo de Cultura do município de Sapé, PB, terra natal do poeta, autor do livro Augusto dos Anjos em Quadrinhos.
Amostragem Poética
Anderson Braga Horta
I — BALIZAS DE UM CAMINHO
UM OLHAR
Aves de arribação, que passais tristes,
que buscais o calor de novos lares…
aves de arribação, acaso vistes
as asas de um amor cortando os ares?
Se da esperança a voz sumida ouvistes,
se lágrimas de luz brotando aos pares
de ocultos arquipélagos sentistes,
nos vôos rente ao dorso azul dos mares,
dizei-me onde é que estão, porque são minhas!
… No entanto elas se foram, tênues linhas
já prestes no horizonte a mergulhar.
Não responderam… Nem sequer me olharam.
Mas diz o coração — que naufragaram
na profundeza de um celeste olhar.
(1950)
UTOPIA
Que saudades, meu Deus, de uma terra infinita,
terra que nunca vi, onde em luzes se agita
o pássaro do amor, a pulsação das almas!
Meu país ideal, que do deserto as palmas
não beijaram jamais… Terra do sol nascente,
da perpétua alvorada, onde brota a semente
sempiterna do amor, dos sonhos e da vida!
Pátria da primavera! ó luz desconhecida,
que do insondável desce e nos penetra fundo
a alma pequena e vil, no globo vil e imundo,
como a purificar a sordidez da Terra!
essência imaterial, que em nossos peitos erra,
do espírito, do amor, da própria eternidade!
Oh! que universo encerra a nação da Verdade,
terra das ilusões perpetuamente em vida?
Vive em brumas, talvez? nos báratros perdida?
Do próprio coração —esse pego profundo
debatendo-se em vão nas borrascas do mundo—
a Humanidade ansiosa aos céus lança este grito:
“Senhor! Senhor! dá forma e dá vida a este mito!
Concretiza este sonho, essa terra ideal,
pátria do céu azul, da ventura eternal,
país que traz no seio, insondáveis, perdidas,
primaveras de luz, fantasias floridas!”
E este grito se perde e esvai-se pelos ares,
do deserto à floresta e dos rios aos mares.
Mas eu sinto no peito uma ânsia infinita,
um desejo profundo, e tenho a alma fita
numa estrada sem fim, cercada de ciprestes,
inundada de luz e de aromas agrestes,
na reta que se perde além dos horizontes,
resplendente da luz de incognoscíveis fontes
a jorrar, em cachões, numa espectral coorte…
E eu vejo esse país nas veredas da Morte.
(1951)
NAVEGAÇÃO
Cintila a noite azul, povoada de estrelas.
Nos olhos do Universo ardem chispas de luz.
Velas pandas no espaço, as ástreas caravelas!
Pelo éter infinito a Via Láctea as conduz
—correntes do Alto Oceano— a ocultos portos. Velas
pandas na escuridão! Nos longos braços nus
o Cruzeiro do Sul a ignotas Compostelas
vai carregando o corpo etéreo de Jesus.
A pálpebra do luar fechou-se. Um manto baço
de nuvens cobre o céu. No entanto, em todo o espaço
ardem constelações — além dos olhos meus.
E eu sonho os mil milhões de universos pulsando,
naus do imenso Oceano, ardentes navegando
para o eterno esplendor das voragens de Deus!
(1952/1979)
DIA APÓS NOITE
Vendo o azul, que dilúculos augura,
da madrugada, e a mágoa do sol-posto,
quedo-me triste, e penso, com desgosto:
O mesmo céu, que é berço, é sepultura.
Assim também, um dia, no teu rosto,
nos teus olhos de cálida brandura,
vi tua alma a acenar-me, inda mais pura
sob o véu do cabelo descomposto.
Como a noite, porém, sucede a aurora,
tu me fugiste, e a luz, que me envolvia,
nas trevas se tornou em que ando agora.
Retorna entanto o sol, que antes morria.
E a minha alma, por isto, já não chora,
mas espera o raiar de um novo dia.
(1953)
O CEMITÉRIO DE ELEFANTES
I
Vem silente o tropel dos tardos elefantes.
(África ardente! Aqui a vida, vária e incerta,
pulula no solar da floresta referta
e enche a desolação dos ermos palpitantes!)
Monótono, ao calor, sob a amplidão aberta,
segue o rebanho. Em grupo, estranhos caminhantes
passam, longe. Esvoaça a alvura dos turbantes.
Melodias de fogo o sol, triste, concerta.
De repente, um clamor assombra os horizontes.
Desordenada, agora, a procissão caminha,
com a fúria dos leões, estremecendo os montes.
E em grita, arruinando as florestas austeras,
eis estoura a manada, em cólera daninha,
espantando os chacais e amedrontando as feras!
II
Súbito um deles pára. Arquejando, sombrio,
com um mudo olhar de adeus, vai deixando a manada.
Pesa-lhe o ar. A terra aos pés lhe some. E em cada
árvores algo de si vê, no seu desvario.
No cérebro do bruto, em célere revoada,
relampejam visões do passado. Vazio,
o olhar agora vê na corrente do rio
o destino da vida… O fim que o espera é o nada!
A selva onde nasceu, as planícies que amava,
o céu, a luz, o ardor da natureza brava,
tudo isto nunca mais, nunca mais há de ver.
Mas aonde vai, que marcha e tropeça e rasteja?
Que fruto derradeiro inda provar deseja?
Que migalha de vida inda ele quer colher?
III
Eis fronteiro ao destino o bruto moribundo.
Ao pé de uma cachoeira, o olhar embebe, aéreo,
além da água irisada. Onde está? Que mistério
o trouxe a este lugar de que não sabe o mundo?
Atravessa o caudal. Do outro lado, no fundo,
uma clareira se abre. Um templo? um cemitério?
O ar, grave e sepulcral como o de um monastério,
agita-se, ferindo o silêncio profundo.
Pára, hesita o elefante, entre brancas ossadas,
às centenas no chão. Fraqueja, desfalece,
já sentindo na fronte o anélito do fim.
E sereno, fechando as órbitas vidradas,
pesadamente cai no solo, que estremece,
entre arcos de granito e presas de marfim!
(1953)
AS CIGARRAS ESTÃO CANTANDO NOVAMENTE
As cigarras estão cantando novamente.
E eu saí para ouvir o canto das cigarras…
Uma aqui, outra ali, monótonas, bizarras,
zinem, fremem assim melancolicamente
como folhas caindo à luz frouxa do poente.
Hoje a tarde está límpida e suave,
da leveza pagã de uma aquarela…
Uma cigarra geme uma nota mais grave.
E uma folha amarela
inexplicável
rasga verticalmente o quadro da janela.
O mar, imperturbável,
beijando longamente a costa atlântica,
dança, plácido, ao som de uma canção romântica
trazida pela mão sonâmbula da brisa.
E, aos murmúrios que vêm da profundeza oceânica,
a tarde agonizante se eletriza.
De repente,
numa fúria satânica,
um grito de volúpia estremece a atmosfera,
como se a maldição de uma cratera
desabasse na calma do crepúsculo!…
Mas a angústia passou, efêmera e nervosa,
como passa a poesia de uma estrela cadente.
Numa agonia vagarosa
a tarde vai morrendo. Um pontinho minúsculo
rompe as nuvens. Depois, languidamernte,
milhões de estrelas jorram no infinito.
Uma última cigarra, impertinentemente,
ensaia ainda um fretenir aflito.
E eu, que vim para ouvir o canto das cigarras
monótonas, bizarras,
volto ouvindo o esplendor de uma orquestra divina,
que aos poucos vai morrendo em trêmula surdina…
(1955)
O TOCADOR DE REALEJO
De repente
melodia estranha avassalou meus ouvidos
como descida dos céus.
Olhei em volta, num deslumbramento.
Era a primeira vez que via um realejo.
E toda a rua se maravilhou
e crianças surgiram não se sabe donde
e o céu desceu à terra
e o mundo parecia salvo!
O macaquinho em cima do instrumento fazia piruetas, sério,
cônscio de seu papel na alegria geral.
Homens satisfaziam-lhe o pires estendido.
Mulheres tagarelavam e crianças apontavam sorridentes com o dedo.
A multidão se dispersou lentamente
sem que ninguém notasse o velhinho de barbas brancas tocando a
manivela.
(1956)
LABIRINTO
Nem com os não merecer não nos perdera.
E, pelos possuir sem merecer,
as mesmas penas sofro que sofrera
por, outrora, querê-los e os não ter.
Ah! quem tal turvamento me entendera!
Em pranto, sinto, sem o compreender,
que eles são velas me esvaindo em cera,
velas em cuja luz arde o meu ser.
Penso que vou morrer, que o sol me apaga.
Olho-os, e ferem-me as pupilas deles;
beijo-os, e, então, sonegam-me o calor.
Não profundemos mais tão funda chaga!
E, pois que tanto mal me fazem eles,
devolvo-te os teus olhos, meu amor.
(1957)
TROVA
Vida melhor não existe
que a das cigarras: à toa,
cantando se a vida é triste,
cantando se a vida é boa.
(1963)
II — ALGUNS POEMAS SOBRE POESIA
GÊNESIS
Fruto de estranho sonambulismo,
grave e sombria como um altar,
minha poesia nasce do abismo
onde em desmaios, enquanto cismo,
brilham suaves lendas de luar…
Nasce do fundo leito dos bosques
onde negrejam sombras de amor;
da água da fonte trêmula e triste
que se destila silêncio e flor.
Nasce da névoa deslumbradora,
do encantamento das ilusões;
do indecifrável poço da angústia,
cheio de rubras aparições.
Nasce do abismo desses teus olhos,
lagos profundos a palpitar,
onde em desmaios, palidamente,
cantam suaves lendas de luar…
(1955)
TORRE DE BABEL
A noite desceu, bruta e simples
em sua beleza selvagem.
A noite caiu como um fruto,
que o homem, faminto, comeu.
Noite estrelas, lua nua,
rua
pálida à luz da lâmpada sombria,
noite caixa-de-segredos,
noite!
Eu não descanso em ti, que és a semente,
descansarei à sombra da árvore alta.
Noite do albor da adolescência, que
foste a minha primeira namorada,
amo-te como se ama a um passarinho morto.
Noite oceano, olhos da amada,
nunca me esquecerei de teu deslumbramento,
que tanto é bela no teu rosto a vida!
Tinha uma pedra no caminho, atirei
no céu — estrela virou.
Cai, noite, cai, doce fruito,
o homem faminto te espera.
(1958)
FÁCIL
Digo: Na remansosa
tarde, expira uma rosa
e pende o cálix, grácil..
Digo-o porque é mais fácil
do que dizer: No dia
sem glória e sem poesia
feito em trevas sem nome,
morre um povo de fome.
(1962)
BABÉLICA
Falo várias línguas
e não me entendo.
Quanto aprontarei
meu próprio instrumento?
Falo várias línguas,
toldas elas mal:
CDA, Bandeira e
—pecado capital—
Castro Alves, Bilac,
etc. e tal.
Por mais que me explique,
não me justifico.
Podia, por desfastio,
inventar o Concretismo.
Mas já foi inventado
e arquivado. Me
restaria agora
buscar a receita
(ah, mas é mais fácil
esperar que terceiros)
pra desta babélica
convergência de outros
que é (m)eu,
cozinhando-a ao ponto,
tirar o eu multívoco
e uno, estranhamente
próprio, que me/eu fosse.
(1963)
TANGENTE
No Mar Encoberto
p l á c i d o
idéiaemoção (palavra) =
a c (s)
b’ r o
cego(s) na superfície. Nas
entrepalavras verde-
(rasgada agora crespa)
-lucila a água fluidíssima.
Sobrejacente a
nave navega, nada.
(1966)
TELEX
A Rumen Stoyanov
A poesia é a fonte em que ativamos a sede.
A poesia é o alimento que impede a saciedade.
A poesia é o espinho que nos protege da flor.
Mas a poesia é flor, ou promessa de flor.
A poesia é o Nada nos-criador que modulamos.
A poesia é a Rosa que inventamos prévia.
A poesia não é a rede, nem o mar, mas o lançar da rede ao mar.
A poesia é o plágio do não visto
Atenção:
a poesia é uma explosão controlada.
(1973)
MULTÍMODA
Não apenas de cálculo se nutre,
nem somente de música, a Poesia.
Nem é ela o noturno, o tetro abutre
a tripudiar nas podridões do dia.
É maior que as campinas onde a lua,
cavalo branco e azul, selvagem nitre;
mais do que amor medrando em pedra nua,
sonho de flor na crosta de salitre.
Tudo cabe no poema — o claro, o escuro,
o cinza, afinidades, dispersão,
fúrias, mares, exílios, natureza.
Que não visa a Poesia ao belo puro,
nem à pura emoção, mas à emoção
transfigurada em timbres de beleza.
(1977)
III — LIVRE ESCOLHA
OLHOS
De repente descubro
a lavada beleza de teus olhos:
(entre mim e o sono,
trazes um sol nos lábios
e nos seios Vênus)
teus olhos são como céus que choveram.
(1959)
INVENÇÃO DA NOITE
Deste silêncio e desta treva
construo a minha noite
particular e intransferível.
Não preciso inventar as estrelas,
elas nascem e brilham por si mesmas.
E à meia-noite uma lua triste
levanta a cara de prata no horizonte
e verte nos meus olhos um choro, um frio.
(1959)
CELACANTO
Nadando em costas d’África
Fruía o Celacanto
Emissário do outrora
O seu quinhão de pranto
No sal que imita a lágrima
Das águas no acalanto.
Talvez último príncipe
De extinta dinastia
Em seus rudes sentidos
A solidão doía
Gritava o alto silêncio
Da profundeza fria.
Do seu mundo apartado
Por muitos milhões de anos
Só — atual e pré-histórico
Assombrando os oceanos
Que mistérios guardava
Nos seus pobres arcanos?
Na viuvez atônita
Tu Celacanto corres
De ti e contra ti
Que de lembrar te morres
E que em tua orfandade
De ninguém te socorres.
Tosco irmão Celacanto
Em solitário nado
Brasão de sonho em fuga
Em campo blau plantado
É verde o teu enigma!
E eu te decifro e calo.
(1960)
REGRESSO
Viver é um desterrar-se
do Limbo, do Nada,
do Onde-não-se-Sabe.
Convivemos o exílio
cordatos, ferozes,
tolas rãs no lago,
esquecidos, vagos,
saudosos às vezes
do que éramos-nada.
Curta circunviagem,
esvai-se a vida,
trêmulo
peixe no mármore.
(1961)
(A)MAR(O)
Em março o mar soletra
sol e ar e luar.
E o pescador espera,
a cismar,
que das espumargênteas
vagalínguas a ondear
saia a palavra peixe.
E põe-se a piscicar,
de anzol, tarrafa, rede,
arpão — o mar.
Tempera-se a salina
escuma na carícia
doce do ar.
Chispam gaivotas-hifens
a mergulhar,
relâmpagos de união
entre ar e mar.
E o pescador espera.
O mar tostou-lhe a cara,
pôs-lhe vagas no olhar
e na pele. Sua alma
tem um fundo de sal.
Mas deu-lhe o mar um vago
íntimo marulhar
que em março, abril, desmaios
de amor lhe dá.
E essa amável magia
é que o faz esperar,
de janeiro a dezembro,
no seu destino claro:
amar o mar amaro.
(1963)
RAÍZES
À noite elaboramos nossa essência
(que importa se esvaneça na alvorada?):
uma ânsia de fantástica existência
de oníricos fermentos insuflada.
A noite é quem recolhe essa mais fluida
secreção da alma: o sonho. Ou, antes, a alma
em movimento, o ser, que, sendo, cuida
de fazer-se, recriar-se em louro e palma.
Alma, sonho. O criador sendo a criatura,
como argila que o próprio sopro anima!
Vive-se o dia para a noite escura
que do clarão do sonho se ilumina.
Pois o que somos sob o sol? — Raízes
de inda inconcretas florações felizes.
(1963)
MATEMOS A ROSA
A Eliezér Demenezes
A gripe me separa de minha família.
Casado — provisoriamente no regime de separação de corpos,
pai — provisoriamente frustrado, desterrado para o outro extremo da
casa,
durmo na sala, de quarentena.
Mas não durmo: penso no porvir de meus filhos.
Não o desejarei de rosas.
Não porque pense nos espinhos
¾ o Homem forma-se na luta
e muita vez os espinhos valem mais do que as rosas.
Mas porque as rosas têm hoje outra carga simbólica
e já nada diferem dos cogumelos.
Pais de todo o mundo, cuidado! aos nossos filhos
não lhes demos a cheirar destas rosas,
a comer destes cogumelos.
Sei que o meu apelo é patético,
sei que somos doidos brincando no jardim,
e talvez eu mesmo ajudasse a plantar a rosa,
a dar sombra e umidade ao cogumelo.
Mas os meus filhos estão chorando
e agarram a vida com ambas as mãos no seio materno.
Quisera lhes dar a justiça que não temos construído,
o amor que não temos regado.
Fujamos para o quintal!
fujamos para os vastos abandonados quintais
de nascituras hortas, pomares e roçados.
A rosa corre de mão em mão
¾ quem quer a rosa?
¾ quem não quer a rosa?
¾ quem a despetala?
¾ quem lhe aduba a terra?
Fujamos para o quintal
e esqueçamo-la,
entre abóboras, repolhos e pepinos,
esqueçamo-la,
sob os pimentões e o trigo
sepultemo-la com sua morte.
As batatas e as cebolas manam poesia.
(1963)
CRIANÇA CHORANDO
Para meu filho Anderson
Teu pranto abala as raízes da noite.
Tuas lágrimas reanimam a velha metáfora
e molham consteladamente o lençol.
Da obscuridade da tua fome
e do teu desamparo
clamas pelo dia, o teu dia,
quando fraldas e cueiros serão retratos esquecidos no álbum
e mamadeiras e chupetas te farão sorrir sobre outros berços.
Da noite do ventre materno saíste para a penumbra
e choras.
Tão pequeno e já franzes a testa.
Porventura sabes quanto pranto é preciso para fazer-se um homem
e te constróis impacientemente.
(1963)
MINHA FILHA
Para a Marília
Minha filha, tudo em ti é pureza,
mesmo o que em nós nos lembra
o charco original.
Merecias um madrigal,
não um poema lírico-triste,
cheio de vã filosofia.
Por ti, devera eu reencontrar a inocência.
Mas como ser inocente e lúcido?
Não, hoje não escrevo o teu poema.
Olho-te, avaro: meu amor é um lago
incomunicativo.
Te pego ao colo. Choras.
Mudo-te as fraldas e adoro-te em silêncio.
(1963)
SEMÂNTICA
As palavras morrem,
virgens, de usura,
— Fartura —
as palavras
finam-se de desuso.
As palavras desviam-se,
mudam de órbita
— Democracia —
as palavras, satélites
forçados a novos planetas.
As palavras ocam-se,
deslembrados signos
— Paz, Amor —
por onde o pensamento,
como um óleo, vaza.
As palavras gastam-se,
oxidam-se de malícia e asco.
— Liberdade! Liberdade! —
As palavras.
(1965)
PLANALTO
§ O mar é um grande pulso que lateja.
O planalto é um mar de vagas imobilizadas na diástole,
e o pulso anula-se na tensão áspera da pele.
§ Gritos mineralizados. O tempo
lapida os cristais fendidos do silêncio.
E das fissuras mana (imperceptível)
uma saudade marinha.
§ Esmagado espanto vegetal. Pássaros
nadam entre as algas. Seres
estranhos
deslizam no fundo. Restos.
§ O Homem, navegador crispado,
vem sulcar estas águas
coaguladas. Decifra na face
do planalto (memória
de mar petrificada)
seu arcano, e semeia-lhe
arquipélagos.
§ Sobre as vagas imóveis
um vivo mar agita-se.
(1967)
DESCOBRIMENTO
Eu, navegador
caótico,
sem carta de marear,
escassa mão no timão, quase sem leme,
igualmente desassistido das poéticas palavras
portulano, astrolábio,
e cuja invisível bússola
nem sempre funciona,
eu, marujo sóbrio
mas entretanto bêbedo de sereias impossíveis,
desta nau que os ventos compelem
—contra toda ânsia de porto
e embora me ache às vezes capitão de ventos—,
nesta longa derrota, eu,
após Circes de circo e calmarias de assexuadas sereias resserenas,
desprezadas duzentas Índias ocidentais e orientais, Brasis de
espanto, Antártidas de olvido,
nesta longa derrota, eu,
vencidas onze mil solidões de sono e éter,
eu, navegador, bastou-me
erguer os olhos
e te amo
: Astros à vista! —
um céu sem céu,
luar de seios, ástrea
carnação nas faces, onde os olhos
são estrelas maiores,
nuvens de asteróides, anéis de Saturno, auroras
boreais, e um sol
violento,
rubra central da vida,
: — sim, e, oh, eu,
navegador, meu caos
organizo,
e subo e, sem vislumbre
de queda,
para o encontro
desces
(âncoras! âncoras!)
E chanto-te o terrestre
padrão nos astros êxules da carne.
(1972)
O PÁSSARO NO AQUÁRIO
§
Era um ponto no aquário.
Era uma escama aberta
no verde dúbio da água. Era uma estrela
mínima em céus de queda.
Era um frêmito, um ritmo,
um verso regressivo à origem, nada,
um sopro extinto, inda outra vez soprado
por sol de oblívio, escuro.
O pássaro no aquário
solfejava em silêncio um sol futuro.
§§
E eram guelras na escuma, e os olhos, algo
como um pranto na areia, entre algas, planctos,
como um pranto chorado em meio a lágrimas
retidas no olho inexistente. E em breve
eram garras na terra, a dura guerra,
o mar perdido e o espaço ausente, ausente.
§§§
Garras, e a crua guerra.
Barro de espanto e dor no descampado
entre o sêmen do sonho e a fronde ao vento.
Mas o dó, mas o espanto,
a dor e seu invento:
um sol menor no peito;
domado, um lá na plúmea
escama distendida em ala urgente.
E era um pássaro na alva de escarlata,
cantando no alto a ária de orvalho e prata!
(1972)
NOTA
“Trova” está em Trovadores do Brasil, de Aparício Fernandes (Rio de Janeiro, Editora Minerva, 19697); “Invenção da Noite”, “Raízes”, “Matemos a Rosa”, “Criança Chorando” e “Minha Filha” integram Altiplano e Outros Poemas (Brasília, Ebrasa / INL, 1971); “(A)mar(o)” e “Celacanto” figuram em Marvário (Clube de Poesia de Brasília, 1976); “Torre de Babel”, “Olhos”, “Regresso”, em Incomunicação (Belo Horizonte, Incomunicação / INL, 1977); “Semântica”, em Exercícios de Homem(Brasília, 1978); “Multímoda” (e)[, “Telex”,] “Planalto” [e “Descobrimento”], em Cronoscópio (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira / INL, 1983); “O Pássaro no Aquário”, no livro desse título (Brasília, 1990); “Labirinto”, em Dos Sonetos na Corda de Sol (Guararapes, 1999); os demais permanecem inéditos em livro.